segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Hana-Bi

Um apreciador de repertório artístico ocidentalizado ao assistir o filme Hana-Bi (1997), do diretor Takeshi Kitano, a priori, pode pensar que se encontra diante de mais um filme de ação violenta repleta de clichês hollywoodianos. No entanto, o ambiente de violência serve apenas para contextualizar o desenvolvimento dramático da narrativa. A construção cinematográfica do diretor japonês inova – pelo menos na perspectiva do espectador ocidental –, pois faz um diálogo incomum entre dois gêneros artísticos: ação e drama.

De forma resumida, o filme narra à história de Nishi, interpretado pelo próprio Takeshi que utiliza sua paralisia facial para construir um personagem de feição inexpressiva, o qual perde sua filha de cinco anos, tem uma mulher com câncer e luta para fazer justiça aos seus companheiros: Tanaka assassinado pelos gângsteres da máfia japonesa Yacuza e Horibe que ficou paraplégico após um tiroteio com os mesmos mafiosos. Já é possível perceber, através desta sinopse, como o filme envolve os dois gêneros narrativos, sendo, portanto necessário avaliar de que forma o filme é construído para entender com mais clareza a forma que a obra desenvolve o argumento.

Os elementos apresentados no começo do filme criam à expectativa no apreciador de entreter-se em mais um filme de violência comum disposto em uma gramática de entretenimento, velocidade, euforia, efetivado por longas cenas de combate, construídas dinamicamente, com mortes, movimentos alucinantes de luta e ruídos ampliados e música turbulenta aumentando a adrenalina e ampliando, deste modo, o envolvimento do espectador com as situações enfrentadas pelos protagonistas.

Hana-Bi, no entanto, apresenta uma estrutura de composição avessa aos modelos de filmes de ação ocidentais em que o espectador que compartilhe desta bagagem ocidentalizada supõe determinado modelo de apreciação. Sendo assim, dentro do ambiente de ação violenta, contempla-se um filme com planos longos e fixos, com pouco movimento dos objetos em cena, quadros sem personagens (cenas em que os personagens saem do plano e se mantêm a imagem do plano por mais alguns segundos).

As cenas de violência entram em consonância com o modo de construção do filme pela forma como são dispostos: sem mostrar os movimentos de luta, o espectador consegue imaginar o que aconteceu vendo o resultado sangrento final e a partir dos sons de socos e chutes que são disponibilizados. Desta forma, com a rapidez da duração das cenas de lutas, o apreciador monta mentalmente a luta, sem notar que as imagens do fugaz combate foram ocultadas.

Outro modo de construir cenas de violência que se contrapõem ao modelo dos filmes de ação de Hollywood é nas imagens dos feridos em combate que agonizando a dor do ferimento são mostradas com clareza e em alguns momentos enfatizadas e construídas para que a ação ocorra lentamente. Como a cena em que seu companheiro, Horibe, leva dois tiros na barriga e é mostrado se debatendo e se arrastando numa tentativa de fuga, transcorrendo em tempo similar ou mais lento ao necessário para que esta mesma ação ocorresse na realidade.

Aliado a forma de construção das imagens, a massa sonora também ajuda a causar um efeito final estranho. Em primeiro lugar, o protagonista emite pouquíssimas falas no filme. Não são raras as situações em que outro personagem fala abundantemente com ele e este se mantém inexpressivo e calado, caracterizando a ausência de diálogos, em grande parte do filme, entre o protagonista e os demais personagens.

Junto a um protagonista que pouco se expressa através de palavras, muitos sons diegéticos, como passos ou pratos sendo colocados na mesa, são ocultados e nenhum som se propaga, concretizando longos momentos de silêncio no filme, aumentando, assim, o tom dramático da obra e não eufórico de um típico filme de ação.

Até mesmo o assalto, comum aos filmes blockbuster de ação como “11 Homens e Um Segredo”, denota esta diferença entre o filme de Takeshi Kitano e o esperado pelo repertório cultural do apreciador ocidental: as construções comuns a estes indivíduos imaginariam um assalto com capangas encapuzados, gritos de mulheres desesperadas e personagens heróicos. Em Hana-Bi, o contrário ocorre, o protagonista se veste de oficial, com o rosto descoberto e uma arma na mão, sem falar nada – como de praxe –executa o assaltado como toda a narrativa: em uma ação lenta e silenciosa. É nesta perspectiva que se justifica a frustração do espectador habituado à cultura artística ocidental que busca um modelo de gênero por reconhecer clichês desta categoria.

Nos efeitos, a conseqüência é que em lugar dos elementos de construção intecionarem uma apreensão do espectador pelo acumulo de informação – muita imagem e muito ruído -, tem-se, em Hana-Bi uma dispersão na apreciação pela união da massa sonora silenciosa e as imagens lentas e fixas.

Desta forma, fica evidente que a obra de Takeshi Kitano, apesar de incorporar elementos comuns aos filmes de ação ocidental, não participa deste modelo de construção narrativa, apesar da associação feita pelo espectador que compartilhe desta bagagem cultural erguida por Hollywood.

Sendo assim, encontramos em Hana-Bi um filme que trata junto ao mundo de violência dos gângsters, o drama sofrido pelo policial ao ter sua filha morta, Nishi, seu parceiro baleado e sua mulher com uma grave doença. Inclusive, é o drama que o protagonista vive que orienta a narrativa e suas ações violentas. Desta forma, Hana-Bi é um típico filme japonês dramático que utiliza em sua construção repertórios artísticos comuns à cultura japonesa.

Para isso, o silêncio presente na maior parte da narrativa e seus planos longos e estáticos constrói imagens para serem contempladas como quadros – objeto recorrente e simbólico no enredo do filme -, objetivando amplas possibilidades de interpretação da ação dramática. As expressões corporais e os olhares substituem os diálogos e os quadros pintados pelo inválido Horibe expressam a natureza da obra fílmica.

A ternura que envolve a relação do casal, onde o afeto não se mostra comum aos hábitos ocidentais, denota o estilo de vida e de afetividade do ideal japonês: poucas palavras, poucos abraços, companheirismo, dedicação e lealdade. Devido ao lirismo da narrativa, construído em um ambiente de violência, há uma nítida sensação de paz na apreciação, potencializada pela massa sonora silenciosa ou embalada pelas músicas instrumentais leves e tranqüilas de alguns momentos do filme. As pinturas coloridas, o mar, as flores, e a pescaria no lago são algumas das escolhas de enquadramento que quebram as frias agressões e mortes presentes no enredo. Trata-se, portanto, de um filme intimista, que incorpora clichês de filmes de ação hollywoodianos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Le Mari de la Coiffeuse

O Marido da Cabeleireira (1990), de Patrice Leconte, narra, em primeira pessoa, a história de Antoine: um homem de meia idade que age com a inocência de uma criança e que sonha em casar com uma cabeleira. Ao concretizá-lo passa a viver dentro do salão de sua esposa, sem emprego ou qualquer responsabilidade social, e sem contato com outros indivíduos, apenas os céticos clientes do salão que se tornam peculiares devido à romântica composição do enredo fílmico.

Este jogo entre romantismo e tragédia conduz o espectador rumo à frustração, pois o desenvolvimento da narrativa favorece a expectativa de uma conclusão feliz, mas que, ao final do filme, é rompida pelo breve suicídio da jovem cabeleireira. Deste modo, o filme, através da música e do cenário coerente com as emoções intencionadas pela obra, é construído a fim de efetivar-se como um filme anti-melodramático. Ou seja, não se busca evidenciar sentimentos dramáticos, mas o amor romântico entre a cabeleireira e o inocente Antoine.

O filme, apesar de narrar com clareza a estória, não é linear. São três momentos da vida de Antoine que se intercalam e se confundem: sua infância, seu romance e sua solidão. Para exemplificar a confusão de períodos, no momento em que a cabeleireira aceita casar com ele, mostra-se a ligação daquele momento com sua infância através da imagem da personagem criança no lugar deste já velho. Esta troca de figuras é comum no cinema e grandes nomes como Igmar Bergman, em “Morangos Silvestres”, já oferecera esta experiência.

A massa sonora do filme é composta, em geral, por música e som ambiente. Em alguns momentos, a música se sobrepõe eliminando o som ambiente que retorna através de ruídos ambientais sonoramente harmônicos, como o pisar em cacos de vidro. A música induz, junto às imagens, à efetivação das emoções programadas pela obra. Em alguns casos, não há entre as cenas um limite sonoro. Músicas e falas passam de uma situação a outra agindo, inclusive, como ligação entre cenas.

O cenário auxilia, também, na concretização destes efeitos no apreciador. A infância e o romance com a cabeleireira são ambientados durante o dia, num local antigo e com elementos coloridos, resultando num ambiente lúdico. Já em seu momento de solidão, além da falta de música e sua expressão de tristeza, o cenário é escuro, mostrando, com clareza, apenas seu rosto.

Tanto esta coerência entre os sentimentos e o cenário, nomeada pelo Romantismo de Solene Simpatia, quanto à idéia de um amor que não pode se realizar na terra, pois este é local da imperfeição e do erro são características típicas de obras românticas. No filme, a união destas duas idéias resulta no suicídio de um dos amantes em uma noite chuvosa.

Além de orientar os sentimentos dos personagens, o dia e a noite, assim como, a própria narração em primeira pessoa e a figura da infância e da velhice, contextualizam a duração da estória. Apesar do narrador aparecer após a morte de sua esposa, ele não narra a história. Ao contrário, assiste como nós, mas apenas através dos sons do mise-en-scène, como um fluxo sonoro da memória.

Os planos costumam ser na altura dos olhos dos personagens em cena. Isto causa no apreciador a impressão de estar vendo através dos olhos de outro personagem fora de quadro. Fica claro, porém, que estas não são as câmeras subjetivas, pois, em muitos casos, no filme, o personagem que pensávamos estar vendo através do seu ponto de vista, entra no quadro.

O modo como é construído o filme e as soluções dispostas em busca da efetivação dos efeitos no apreciador fortalecem a desdramatização da obra. A personalidade infantil da personagem principal enaltece a suavização da ação dramática na obra, já que o olhar da criança é comumente associado à felicidade e boas lembranças. É baseado em uma construção romântica e de beleza plástica que a narrativa é conduzida e concluída. Para, a partir deste modo de construção, potencializar ainda mais a frustração do espectador que espera um desfecho análogo ao modo como a narrativa e seus efeitos são estabelecidos no decorrer da apreciação da obra.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

La Leggenda del Santo Bevitore

O filme “La Leggenda del Santo Bevitore” (1988), traduzido para o português como “A Lenda do Santo Beberrão”, é resultado da adaptação do livro, de Joseph Roth, pelo diretor cinematográfico Ermanno Olmi.

Neste filme, a narrativa é construída e ambientada a partir de dois elementos principais: o aspecto socioeconômico e o religioso. Estas são as noções que, além de motivar os efeitos programados pelo filme, conduzem à história e estabelecem seu enredo, seu desenvolvimento e sua conclusão. Para elucidar a tese a qual proponho, de uma razão sócio-religiosa nesta construção cinematográfica, vale estabelecer, aqui, uma redução coerente do objeto em análise: o filme, de modo simplificado, conta a estória de um marginal que, através da oferta monetária de um desconhecido, é levado a caminhar junto a Santa Teresa até o fim de sua vida. Este reducionismo da narrativa do filme, porém, não deve ser associado a um objeto de pouca significação. Pelo contrário, sua ligação com o mundo metafísico amplia e torna complexo o entendimento da obra.

A figura do objeto marginalizado, partindo do modelo de mendigo brasileiro, é de extrema peculiaridade. Apesar do contato do espectador com o passado de Andreas ser resultado apenas de flashback e de personagens que reaparecem durante os acontecimentos narrados no filme, presume-se que nem sempre ele viveu naquela situação: ele é um mendigo alfabetizado, que, através do minério, tinha um meio de subsistência e que tinha família e relações sociais em seu passado. Não fica claro, no entanto, o porquê dele estar vivendo como um mendigo. As marcas deixadas pela vida de extrema pobreza não são suficientes para transformá-lo em um individuo que destoa fisicamente dos demais. Apenas os aspectos simbólicos como a roupa ou a barba mal feita o distingue como um mendigo.

Quando este recebe o contato da Santa Teresa junto ao dinheiro emprestado, sua vida sofre uma ascensão tanto no que concernem suas relações sociais e amorosas quanto seu aspecto físico (barbeia-se, toma banho, recebe novas roupas etc). É a partir deste ponto que a narrativa se desenvolve em busca do auge e do frustrante declínio do personagem.

Estes dois momentos dos últimos dias da vida de Andreas são auxiliados pelo uso da música e do cenário, não só referente ao ambiente ao qual é narrado, mas a expressividade do rosto dos personagens em cena, enfatizados por planos fechados e com a iluminação direcionada nos elementos de principal importância. A construção da fotografia deste filme recorda características da utilização da iluminação e de composição de cenas de pinturas Impressionistas e Barrocas.

Como Caravaggio, pintor italiano de estilo Barroco, Olmi toma emprestado a imagem de pessoas comuns das ruas e concilia a arte com a doutrina cristã, conectando aspectos sociais aos divinos. Além disso, o resultado tangível de suas obras se assemelham pela dimensão e impacto realista que se obtém a partir do uso do fundo raso, escuro, muitas vezes totalmente preto e que agrupa a cena em primeiro plano utilizando focos intensos de luz sobre os detalhes, geralmente nos rostos. Como ilustração da inspiração em Caravaggio, podemos comparar o quadro “A vocação de São Matheus” com os planos de Andreas dentro do bar. Este recurso de sombra e luz atrai o apreciador para dentro da cena e, no filme, aparece em momentos que há uma ênfase nas expressões do rosto dos personagens, afogando o espectador na narrativa do filme.

Já a influência do Impressionismo é confirmada em muitos planos de paisagem, onde se tem imagens sem contorno, de cores dissolvidas e de tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz de uma fonte específica num determinado momento. Além disso, a forma como é utilizado o reflexo na água, em algumas cenas de paisagem, enaltece o reconhecimento e assimilação com o Impressionismo.

A imagem similar às pinturas agrega um valor artístico pelo reconhecimento. Isto significa que quando o apreciador associa estes elementos às pinturas de alto valor simbólico, o filme incorpora a qualidade de grandes figuras da história da arte e disponibiliza o reconhecimento por parte do espectador para que este se sinta contemplado pelo diálogo entre linguagens artísticas.

Outro diálogo entre o filme e um grande nome da história da arte, aparece em sua massa sonora. A música, em “A Lenda do Santo Beberrão”, é de autoria do grande compositor de música clássica Igor Stravinsky. A presença de seu trabalho, no filme, não só agrega mais um elemento ao seu valor artístico, como potencializa os efeitos programados pelo filme.

Unindo a música à fotografia e às belas interpretações, percebemos a forma como a narrativa conduz o espectador através da vida do mendigo Andreas: o apreciador não só acompanha seu caminho, como compartilha as emoções do personagem em seu auge e declínio, efetivando o jogo perceptivo pretendido pela obra.

Os cânticos da igreja e o badalar dos sinos ambientam sonoramente o contexto cristão em que o mendigo vive. E é exatamente esta relação entre um indivíduo que vive à margem da sociedade e encontra a espiritualidade da religião católica através de uma situação extraordinária, que envolve o espectador na narrativa do filme. Os elementos de composição de cena se ligam para imergir o apreciador na experiência estética proporcionada pela construção de um filme multi-significativo, devido às suas bases narrativas, e de fortes sentimentos e sensorialidade, conseqüência da primorosa constituição visual e da poderosa massa sonora do filme.